Em nossos estudos sobre transparência nos deparamos com várias definições deste conceito. A maior parte das definições foca nas empresas enquanto emissores das mensagens e, inclui aspectos de: compartilhamento, acesso, disponibilidade e disseminação pública de informações em tempo adequado. No entanto, outra corrente de definições adota uma perspectiva mais centrada nas pessoas que estão recebendo estas mensagens, analisando o grau e a extensão em que as pessoas estão conscientes das informações e compreendem seus princípios subjacentes, além da habilidade de ver e interpretar estas informações em tempo adequado (Schnackenberg & Tomlinson, 2016). Esta segunda corrente sugere que é preciso uma boa dose de empatia e aproximação com seus stakeholders, especialmente seus clientes.
Ao longo da história, várias medidas de transparência foram tomadas por empresas, seja em caráter mandatório ou voluntário, mas nem todas atingiram os objetivos pensados inicialmente. Quando se implementa uma medida de transparência, em geral, deseja-se que as informações envolvidas sirvam para melhorar a tomada de decisão das pessoas e, consequentemente, mude seus comportamentos. Entretanto, nem sempre funciona. Nem sempre as pessoas ficam cientes das informações, usam as mesmas, ou pior, nem sempre as utilizam de forma consistente com os objetivos planejados pelas empresas. Na prática, os efeitos das informações reveladas podem, até mesmo, ser contrários àqueles esperados (Fung, Graham, & Weil, 2007).
De acordo com os pesquisadores Fung, Graham e Weil (2007), dois aspectos são fundamentais para o sucesso das medidas de transparência. Em primeiro lugar, a transparência tem que ser centrada no usuário, em suas necessidades, objetivos, valores, interesses e habilidades de compreensão. Além disso, a transparência e a materialidade da informação precisam se encaixar com a rotina de tomada de decisão destes usuários. Em segundo lugar, as medidas precisam ser capazes de se manter e se atualizar no futuro, em termos de uso, precisão e escopo, podendo dar origem a indicadores e métricas longitudinais que ajudam a mapear ajustes necessários. Ou seja, objetivos e práticas de transparência precisam se aprimorar ao longo do tempo.
Mas afinal, como criar medidas de transparência consumer-centric que conduzam a comportamentos sustentáveis? Para responder a esta pergunta, propomos um mergulho no campo de comportamento do consumidor que identifica uma atitude positiva do consumidor em relação à sustentabilidade, que, porém, nem sempre se traduz em comportamentos sustentáveis (Prothero et al., 2011).
Adotar comportamentos sustentáveis significa mudar suas práticas e valores, ou seja, abandonar práticas anteriores e adotar novas. Suarez, Chauvel e Casotti (2012) mostram que o abandono é um processo que pode passar por diferentes etapas como redução do consumo, esfriamento e distanciamento da categoria envolvida, entre outros rituais. As autoras destacam três tipos de abandono: contingencial, posicional e ideológico. No abandono contingencial, o consumidor mantém laços simbólicos positivos com a categoria de produto ou serviço, no entanto, algum motivo de força maior se impõe ocasionando o abandono. Este é o caso quando, por exemplo, o consumidor abandona o consumo de carro por ter que economizar, ou por restrições impostas pela idade avançada. Se o consumidor pudesse, voltaria a consumir o produto que permanece associado em sua memória a significados positivos e, por vezes, nostálgicos.
O segundo tipo de abandono é o posicional. O consumidor rompe com significados atrelados ao produto pelo mainstream, desejando para si uma postura diferenciada em relação à maioria, muitas vezes embasada por uma crítica: “eu não sou igual à maioria”. A ruptura com o simbólico pode se refletir, por exemplo, em um discurso que rejeita aspectos simbólicos da “classe média brasileira” em relação ao carro, como “status”, e procura se fundamentar na racionalidade, ressaltando aspectos funcionais, como economia e praticidade oferecidas por outras formas de mobilidade urbana. A minoria crítica é descrita como uma tribo diferenciada, que compreende a realidade social de uma forma privilegiada (Suarez et al., 2012).
O último tipo de abandono descrito na pesquisa é o ideológico. Neste caso, além de romper com os significados tradicionais do produto, o consumidor tem uma abordagem coletivista e acredita que toda a sociedade precisa repensar ou evitar aquele consumo. Este consumidor tem uma postura ativista e tenta mobilizar outros a se engajarem naquele movimento (Suarez et al., 2012). Se, a princípio, este consumidor pode ser estigmatizado por estar provocando reflexões sobre práticas e valores que não são compartilhados pela maioria da sociedade, aos poucos, algumas de suas ideias vão penetrando e sendo transformadas de forma a gerar um movimento social de maior aceitação dentro da cultura (McCracken, 1986).
Em resumo, a mudança de práticas dos consumidores envolve mais do que aspectos individuais e psicológicos. Interações sociais, interações entre as práticas cotidianas e fluxos de influências são fatores fundamentais para o entendimento da realidade dos consumidores. As práticas de consumo estão interligadas (Shove & Pantzar, 2005; Shove, Pantzar, & Watson, 2012). É comum emergir em nossas pesquisas estas relações. Consumidores começam práticas sustentáveis por diferentes caminhos, mas a adoção de uma nova prática acaba impactando outras. Ou seja, se tornar mais consciente sobre alimentação, por exemplo, pode provocar reflexões sobre o consumo de beleza, moda, medicamentos, entre outros.
Para a transparência ser eficaz e mobilizar o engajamento em práticas sustentáveis, é preciso ir além do indivíduo e compreender o movimento de mudança dos consumidores em seu contexto sociocultural (Shove & Pantzar, 2005; Shove et al., 2012). A relação dos consumidores com os ativistas de um determinado setor representa um ponto de partida interessante para se estudar os sinais de futuro com relação a transparência. Ativistas trazem à tona espaços de mercado ainda não ocupados sinalizadores de oportunidades para inovações. Compreender as relações de influências ajuda a compreender, portanto, tendências de mercado. Que práticas os ativistas estão buscando disseminar e quais estão sendo questionadas? Como suas denúncias e apelos estão sendo (re)interpretados pelos consumidores? Que dúvidas despertam? Que necessidades de novos aprendizados e reflexões emergem? Como a transparência pode contribuir para o engajamento nas práticas sustentáveis neste contexto?
Acreditamos que empresas com posicionamento de transparência e sustentabilidade devem embasar suas decisões a partir da imersão na experiência do consumidor, preferencialmente por meio de uma pesquisa etnográfica baseada na jornada do consumidor em sua mudança de práticas. A investigação precisa adotar uma perspectiva ampla que compreenda o contexto cultural, as influências e interações sociais, o sistema de valores dos consumidores, suas tensões e nos processos de abandono de práticas e adoção de novas. Com esse mapeamento, é possível gerar insights aderentes às experiências das pessoas e, então, priorizar ideias e tangibilizar medidas de transparência mais efetivas.
O caminho para um consumo mais sustentável passa pela mobilização de um consumidor-cidadão, que não se motiva apenas por interesses próprios, mas também considera uma perspectiva mais coletivista em suas decisões e práticas. A transparência assume uma função na formação deste indivíduo no papel social de consumidor-cidadão. Ser impactado por informações relevantes no momento adequado e na forma adequada pode despertar um processo de reflexividade e mitigar possíveis ambivalências e tensões envolvidas no consumo (Prothero et al., 2011).
Empresas que adotam práticas transparentes e éticas centradas no consumidor podem aumentar confiança, engajamento, minimizar percepção de risco e favorecer a escolha por uma marca (Buell, 2019). Além disso, esta aproximação com o consumidor e o foco na transparência têm o potencial de aprimorar processos, e construir vantagens competitivas (Marshall, McCarthy, McGrath, & Harrigan, 2016). Buell (2019) e Marshall et al (2016) foram foco da nossa Newsletter do mês passado – acesse aqui
Dra. Catia Moreira para a Newsletter Rede Transparência & Sustentabilidade em Negócios
Referências citadas no texto
Buell, R. W. (2019). Operational Transparency. Harvard Business Review, 97(2), 102-+.
Fung, A., Graham, M., & Weil, D. (2007). Full disclosure: The perils and promise of transparency: Cambridge University Press.
Marshall, D., McCarthy, L., McGrath, P., & Harrigan, F. (2016). What’s your strategy for supply chain disclosure? MIT Sloan Management Review, 57(2), 37-45.
McCracken, G. (1986). Culture and Consumption: A Theoretical Account of the Structure and Movement of the Cultural Meaning of Consumer Goods. Journal of Consumer Research, 13, 71-84.
Prothero, A., Dobscha, S., Freund, J., Kilbourne, W. E., Luchs, M. G., Ozanne, L. K., & Thøgersen, J. (2011). Sustainable consumption: Opportunities for consumer research and public policy. Journal of Public Policy & Marketing, 30(1), 31-38.
Schnackenberg, A. K., & Tomlinson, E. C. (2016). Organizational transparency: A new perspective on managing trust in organization-stakeholder relationships. Journal of Management, 42(7), 1784-1810.
Shove, E., & Pantzar, M. (2005). Consumers, producers and practices: Understanding the invention and reinvention of Nordic walking. Journal of consumer culture, 5(1), 43-64.
Shove, E., Pantzar, M., & Watson, M. (2012). The dynamics of social practice: Everyday life and how it changes: Sage.
Suarez, M., Chauvel, M. A., & Casotti, L. (2012). Motivações e significados do abandono de categoria: aprendizado a partir da investigação com ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis. Cadernos EBAPE, 10(2), 411-434.