“A Verdade Nua & Crua”

Quem faz suas roupas? Quais as consequências de uma peça de roupa barata demais? A verdade nua e crua de todos aqueles que assim como eu não andam nus, é que simplesmente não sabemos responder a estas perguntas.

O custo real de uma peça de roupa deveria incluir todas as externalidades, ou seja, todos os impactos sociais e ambientais do processo produtivo. Somente desta forma se torna justa a comparação entre o preço de uma marca tradicional (que polua ou maltrate seus trabalhadores) e uma marca que verdadeiramente incorporou processos de baixo impacto socioambiental. Além de incorporar externalidades, as marcas precisam tornar seu impacto (ou melhor, a redução significativa do impacto) transparente. Como calcular o custo verdadeiro de um produto? A nossa pesquisadora Alice faz uma resenha sobre o importante documentário True Cost [leia abaixo].

Além de aferir o custo real dos produtos, precisamos repensar nosso modelo de consumo, migrando do conceito de posse, para o conceito de aluguel. Afinal, quantas vezes por ano você usa um casaco de inverno? Seria possível alugar ao invés de deixá-lo guardado 99% do tempo, correndo o risco de mofar, para usar nos poucos dias de inverno tropical? O Instituto C&A mostra que o mercado de economia compartilhada – a nova prática de swapping vai atingir 1 trilhão de reais em 2025.

Mas temos saída para estes desafios? Pedro Ruffier, fundador da Movin, marca inovadora em transparência acredita que sim. Ele e sua marca têm avançado na discussão de uma moda transparente e de modelos de economia circular e troca. Temos trabalhado juntos nesta direção e estamos montando um Caso de Ensino sobre a Movin. Sua empresa também tem uma história inovadora em transparência? Independente do segmento de mercado que atua tenha seu caso contado aqui na nossa Newsletter e transformado em Caso de Ensino para os cursos do COPPEAD. Clique aqui e escreva para nós

Enquanto refletimos tem gente se mexendo. Esta semana foi anunciado na França o Fashion Pact – uma iniciativa sem precedentes na moda que reúne 150 empresas para se engajar em três diferentes frentes: (1) aquecimento global (meta de zero emissões até 2050 para manter o aquecimento global abaixo de 1,5 grau até 2100); (2) restauração da biodiversidade; e (3) preservação de espécies e oceanos (principalmente reduzindo o uso de plásticos de uso único).

Ampliando o escopo da moda para o ambiente de negócios em geral, a The Economist pergunta esta semana: What companies are for? [Para que servem as empresas?] E completa “Across the West, capitalism is not working as well as it should” [Em todo Ocidente, o capitalismo não está funcionando tão bem como deveria]. A reportagem destaca que empresas estão sendo acusadas de pecados diversos, desde o foco excessivo no curto prazo, negligenciando investimentos, até a exploração da força de trabalho e falhas em pagar pelas externalidades produzidas por suas operações. Não deixe a verdade nua e crua te pegar de calças curtas quando a maré baixar. Venha com a gente!

Curtas:

  • A partir de agora nosso Newsletter será bimestral! E a partir da próxima edição, em formato escrito e podcast. Seguimos na busca do melhor mix de formato, periodicidade, e conteúdo para aumentar o impacto e alcance da nossa pesquisa. Sugestões são extremamente importantes.

  • Em breve teremos detalhes do nosso II Workshop da Rede Transparência, que será em Janeiro de 2020. Pretendemos triplicar de tamanho. Fique atento. Fico por aqui. Até Outubro.

Dr. Leonardo Marques
Professor do Instituto Coppead de Administração
Coordenador da Rede Transparência e Sustentabilidade em Negócios

Resenha do Documentário True Cost

Os bastidores (nada glamorosos) da indústria da Moda e custo real dos produtos que compramos

Um ‘soco no estômago’. Foi o que representou o documentário The True Cost para mim e para outros com quem conversei. A mensagem principal do documentário é a de que não podemos mais ignorar os custos reais gerados pelo consumo desenfreado e por preços desproporcionalmente baixos que sustentam o modelo vigente na indústria da Moda. Uso a forma verbal ‘podemos’ para enfatizar que todos os envolvidos na cadeia de valor temos o nosso papel e precisamos nos sentir parte do problema e da solução.

Com o foco na indústria da Moda, o documentário alerta para uma guinada significativa no modus operandi do setor nas últimas décadas. Tomando os Estados Unidos como exemplo, 90% das roupas vendidas no país eram produzidas localmente na década de 1960. Hoje esse percentual é de apenas três por cento. Testemunhamos a migração da produção têxtil para países em desenvolvimento em busca de salários mais baixos e legislações mais brandas no que tangem a responsabilidade social e ambiental.Aliado a isso, vimos uma concentração do mercado na mão de poucos. Estas poucas e grandes empresas detém hoje grande poder de influência frente aos consumidores, ditando o fast fashion como norma vigente, e frente aos fornecedores, pressionando-os constantemente por menores preços. Donos de confecções em países orientais comentam no filme sobre a deflação no preço dos produtos apesar de crescentes custos de mão-de-obra. O resultado dessa equação é a adoção decutting corners, que em bom português pode ser traduzido como jeitinho. Os efeitos dessas práticas permaneciam velados até ganharem visibilidade mundial com um dosmaiores desastres já registrado no setor. O desabamento de um edifício em Bangladesh, o Rana Plaza, causou a morte de mais de mil trabalhadores e deixou outros milhares de feridos. Neste prédio funcionavam confecçõesque produziam para grandes marcas como Gap, H&Me Walmart, o que acentuou o interesse da mídia e também dos consumidores na temática de condições de trabalho.

Alertas haviam sido dados. Rachaduras eram visíveis e trabalhadores tentavam avisar. As condições de trabalho eram precárias, a carga horária extensa eos salários reduzidos. O salário dos trabalhadores em Bangladesh passou de $10 para $3 ao longo dos anos. Dependentes do emprego, continuaram a se submeter a tais condições. Tentativas de exposição dos problemas e reinvidincação de soluções resultavam em punições severas e até em mortes. Os trabalhadores não tinham voz. No documentário, um dono de fábrica chega a dizer que “trabalhadores não podem atrapalhar o trabalho do dono”. Cuidados básicos de saúde e segurança tornaram-se impedimentos para o objetivo único (e cego) do resultado econômico-financeiro. Sendo este o setor que mais emprega pessoas no mundo (um sexto dos trabalhadores), torna-se ainda mais relevante e urgente buscar outros caminhos.

O documentário aponta ainda para impactos negativos em outros elos da cadeia produtiva. Um impacto emblemático refere-se à agricultura. O processo de industrialização da agricultura alavancou a produtividade no curto prazo mas deixa marcas. A natureza tende a se auto-recuperar e se auto-regular, mas em proporções pequenas. A abordagem atual de grandes monoculturas empobrece o solo e estimula o aparecimento de pragas.A contra-partida é o uso crescente de sementes geneticamente modificadas (transgênicos), deaditivos químicos e persticidas, os quais têm impacto direto na saúde dos trabalhadores, comunidades rurais e consumidores. Um ativista ambiental indiano entrevistado apresenta no documentário o aumento dos casos de câncer e demência na população rural, levando ao assustador número de mais de 250 mil casos de suicídio. Os persticidas impactam também as gerações futuras. Filhos de mães expostas à água e ar contaminados geram crianças doentes e com necessidades especiais, físicas e mentais.

Outro impacto por vezes negligenciado são os resíduos gerados pela indústria da moda. Além da emissão de gases poluentes e contaminação de água e solo ao longo do processo produtivo, o conceito de fast fashion tornou a roupa um item facilmente descartável. O descarte muitas vezes é justificado pela doação, porém apenas 10% das doações é realmente aproveitada. Isso faz com que, apenas nos Estados Unidos, 11 milhões de toneladas de lixo têxtil sejam despejados em lixões ou incinerados. A questão fundamental é que todo esse custo social e ambiental não entra no custo do produto, sendo deliberamente negligenciado. E assim continuamos cegos a tudo isso e continuamos repetindo que“não compro produto orgânico porque é mais caro”.

Apesar de haver quem justifique as práticas atuais com base no aumento da produtividade, na geração de emprego (em especial no caso das confecções) e na suposta segurança do setor (riscos menos aparentes do que setores como mineração e óleo e gás, por exemplo), agentes de diferentes pontos dessa rede reconhecem a urgência e apontam para um caminho em busca do fair trade. O documentário apresenta diversas iniciativas. Empreendedores que criam a partirdo knowhow e da capacidade já existentes em seus fornecedores e comunidade. Empresas que buscam parcerias mais equilibradas e igualitárias, desenvolvendo juntos soluções criativase novos modelos de negócio. Celebridades e designers levantando a bandeira de um consumo mais consciente. Consumidores demandando informações sobre a origem e riscos dos produtos consumidos e dispostos a perguntar e a não mais aceitar falta de transparência.

Mas a mudança é longa e gradual. E os pilares dessa transformação estão na real mudança de paradigma. Enquanto o resultado econômico-financeiro for o único fator decisório para empresas e consumidores, será difícil promover a transformação necessária.Nosso sistema é falho pois só mede o lucro. Richard Wolf, PhD em Economia, diz que não vê espaço para questionar o modelo econômico vigente (capitalismo), apesar deste produzir tanta desigualdade. Sem questionamento, não há evolução, aprimoramento. Então o sistema colapsa. E é isso que estamos presenciando. A ideia básica do capitalismo, segundo o qual não se pode haver limites para o crescimento, conflita diretamente com os reais limites da natureza quanto ao que pode ser produzido, negociado, transportado, distribuído e descartado. Já ultrapassamos vários desses limites. Precisamos de uma mudança sistêmica urgente. Ajustes pontuais tendem a apenas deslocar o problema. Para mudar significativamente, precisamos mudar o sistema atual. O momento da virada é agora. Frente a tantos desafios, conclui o documentário, quem sabe não podemos começar pelas roupas.

O documentário The True Cost está disponível em https://truecostmovie.com. O site traz também informações sobre direitos humanos, impactos ambientais e dicas para um consumo mais sustentável.

Dra. Alice Erthal para a Newsletter Rede Transparência & Sustentabilidade em Negócios