Assista o webinar completo, apresentado pelo professor Leonardo Marques e pela professora Alice Erthal, e faça o download da apresentação de PowerPoint nos links abaixo:
Categoria: Uncategorized
Blockchain na Indústria da Moda
Blockchain por uma Moda Justa e Transparente
O Impacto Oculto da Moda
A Moda é hoje uma indústria de trilhões de dólares e um dos maiores empregadores no mundo, sendo que três quartos do contingente de trabalhadores são mulheres. O Brasil é o quarto país em produção e consumo de denim, por exemplo, e em 2018 o setor têxtil empregava diretamente 1,5 milhão de pessoas, e gerava em torno de 8 milhões de empregos indiretos (ABIT, 2020). O porte do setor aliado a escândalos recentes trouxeram aumento da preocupação com o impacto social e ambiental das roupas que vestimos (WorldBank, 2019). Na frente ambiental, o ciclo da produção de fibras ao descarte de roupas consome e polui água, produz grandes quantidades de gases de efeito estufa e, muitas vezes, roupas de baixa qualidade têm um curto ciclo de vida, sendo descartadas em aterros ou incineradas (EllenMacArthurFoundation, 2017). Mas é no impacto social que o setor vem chamando mais atenção negativa, com evidências significativas de escravidão moderna (no inglês: modern slavery) ou trabalho análogo à escravidão, como é chamado no Brasil.
Impactos tanto de ordem ambiental, quanto de escravidão moderna não costumam ocorrer dentro dos muros das grandes marcas, mas sim em seus fornecedores, ou ainda nos fornecedores dos fornecedores (Busse, 2016; Tachizawa & Wong, 2014). Porém a maioria das empresas detém pouca ou nenhuma visibilidade sobre seu supply chain, e logo, são incapazes de assegurar práticas sustentáveis em seus fornecedores (Marques, 2019). Na Moda em particular, estudos tem enfatizado sua natureza intensiva em mão-de-obra, falta de visibilidade e ausência de processos maduros de responsabilidade social (Zorzini, Hendry, Huq, & Stevenson, 2015). A consequência é um alto risco de situações de escravidão moderna.
Escravidão Moderna: O Calcanhar de Aquiles da Moda
A prática de escravidão inicia sua história no passado distante de forma legalizada e chega nos dias de hoje como uma atividade criminalizada, porém largamente praticada em ambientes com alta informalidade e regulação fraca. A escravidão moderna tem caráter controverso e é difícil enfrentar este problema que está oculto em locais onde os padrões legais (e suas falhas) protegem quem o pratica. Ao estudar este tema, percebe-se claramente que nem tudo que é legal, é ético (Broad & Turnbull, 2019). A escravidão moderna não ocorre apenas quando a pessoa trabalha sem remuneração. Muitos trabalhadores nesta condição são remunerados, mas sofrem desumanização e restrição da liberdade, com condições inóspitas de higiene e dívidas desproporcionais com custos de moradia e alimentação que consomem mais de 100% de sua renda (Marques et al., 2019). Devido à percepção difusa sobre direitos humanos, muitos lugares não têm uma política clara para identificar, controlar e prevenir práticas de trabalho injustas (Broad & Turnbull, 2019).
A escravidão moderna é o Calcanhar de Aquiles da indústria da Moda, com seu formato de terceirização e quarteirização. Para enfrentar este problema, precisamos de um sistema que permita inspecionar o supply chain e identificar vítimas de escravidão moderna e práticas de trabalho injustas (ILO, 2017), em particular no Brasil onde falhas na legislação aumentam o problema.
Transparência Inóspita e Responsabilidade Turva
Em um estudo sobre mercados emergentes, Khanna e Palepu encontraram evidências da falta de “instituições formais que são necessárias para apoiar as operações básicas de negócios” (1997, p. 41) e eles chamaram essas lacunas de ‘vazios institucionais’. Os autores identificam cinco tipos de vazios institucionais: falta de intermediários e apoio institucional formal em (a) mercados de produto fracos, (b) mercados de trabalho não estruturados e (c) mercados de capital não estruturados, (d) ambiguidades nas regulamentações e (e) falta de sistemas formais de contratação. Juntos, estes vazios coexistem, estão interligados e se originam no contexto de pobreza. Apesar da heterogeneidade entre os diferentes mercados emergentes, todos eles ficam aquém, em certa medida, de fornecer as instituições necessárias para práticas éticas de negócio (Khanna & Palepu, 1997).
No Brasil, a transparência é particularmente prejudicada tanto pela falta de exigências de transparência quanto pela legislação que favorece a opacidade. Em nosso estudo anterior, cunhamos os termos ‘transparência inóspita’ e ‘responsabilidade turva’ para representar o vazio institucional regulatório. O termo transparência inóspita enfatiza o desafio de pesquisar, filtrar e baixar dados disponíveis publicamente. Em particular, temos feito um enorme esforço para mapear infrações e decisões judiciais sobre as condições de trabalho que estão disponíveis em uma base de dados online com baixo nível de consciência pública e difícil de ser avaliada e compreendida por não-advogados. Já o termo responsabilidade turva destaca a ampla utilização de terceirização e quarteirização no setor da Moda, que permite a grande marca explorar circunstâncias e interpretações da lei para se distanciar das práticas desleais praticadas por seus fornecedores, e principalmente, os fornecedores dos fornecedores. A consequência perversa destes dois elementos da legislação brasileira é a facilidade de separar a responsabilidade entre a empresa focal e os fornecedores (Marques et al., 2019).
O potencial do Blockchain no Supply Chain
Embora exista um número crescente de empresas divulgando a procedência de sua produção, esta tendência pode ser cara e os benefícios ainda não são claros (Sodhi & Tang, 2019). Em cadeias de suprimento pulverizadas como na Moda, transparência está diretamente ligada à visibilidade sobre os fornecedores em sequências de terceirização e quarteirização (Marques et al., 2019). Mas existe uma diferenciação importante entre visibilidade e a transparência do supply chain de marcas. Visibilidade está relacionada ao esforço da empresa em reunir informações sobre sua cadeia de suprimentos, enquanto transparência significa a divulgação destas informações reunidas para o público, investidores e consumidores (Sodhi & Tang, 2019). Embora muitas empresas invistam em visibilidade para melhor controlar sua cadeia de suprimentos, nem sempre isto se transforma em transparência efetiva (Marshall, McCarthy, McGrath, & Harrigan, 2016).
É no contexto acima que começam a surgir projetos inovadores para usar Blockchain para aumentar simultaneamente visibilidade e transparência do supply chain. Tendo um caráter mais confiável, autêntico e transparente, o Blockchain é proposto para melhorar nas duas dimensões (Azzi, Chamoun, & Sokhn, 2019).
Blockchain é um banco de dados não centralizado em uma estrutura de cadeia de blocos de registros públicos ou privados que tem como principais características: confiabilidade, sendo quase impossível de fraudar; rastreabilidade, cada etapa do processo é registrada em um bloco e as pessoas podem ter todas as informações sobre um objeto utilizando esta tecnologia; e autenticidade da informação, o responsável por verificar as informações que são carregadas no sistema não tem preconceito e é o mais imparcial possível (Tapscott & Tapscott, 2016). Quando há falta de confiança na cadeia de suprimentos, Blockchain pode viabilizar uma solução imparcial para melhorar a sustentabilidade social (Pournader, Shi, Seuring, & Koh, 2019), gerando um processo de garantia de direitos humanos e práticas de trabalho justas e seguras e também para reduzir a chance de comportamento oportunista (Saberi, Kouhizadeh, Sarkis, & Shen, 2018).
Existe um número crescente de trabalhos acadêmicos sobre Blockchain em cadeia de suprimentos (Pournader et al., 2019) e cada vez se identificam mais iniciativas e start-ups explorando esta tecnologia. Mas tanto na literatura, quanto nas aplicações reais, percebe-se a concentração em soluções para problemas econômicos e do meio ambiente (por ex: pegada de carbono), e assim, uma carência de exemplos e de proof-of-concept em que o Blockchain é aplicado para resolver questões sociais na cadeia de suprimentos (Pournader et al., 2019; Saberi et al., 2018).
Até que ponto Blockchain pode aumentar a rastreabilidade das condições de trabalho, com menor custo, no supply chain da Moda? E mais importante, como Blockchain pode ajudar a alinhar rastreabilidade com transparência efetiva para os diversos stakeholders?
Dois Coelhos com uma Cajadada: Custos de Transação e Melhoria da Sinalização
O quadro atual coloca dois grandes desafios para as empresas. O primeiro é como garantir visibilidade do supply chain dentro de custos factíveis. Os custos da transação no supply chain incluem os custos de desenvolver relações com os fornecedores, monitorá-los, gerenciar problemas que surjam e se proteger de oportunismo – ou seja – fornecedores tentando tirar vantagem na relação. Não é surpreendente pensar que Blockchain pode reduzir substancialmente os custos de transação (Kshetri, 2018; Treiblmaier, 2018). Estudos afirmam que no longo prazo, o Blockchain não só vai reduzir estes custos, como tornar mais atrativa a terceirização – já que ela estará mais controlada e segura (Shermin, 2017; Tapscott & Tapscott, 2016).
O segundo problema trata do desafio das empresas em reduzir a assimetria de informação no processo de comunicação com seus diversos stakeholders como clientes e investidores (Connelly et al., 2011). Historicamente, relatórios de sustentabilidade são a forma tradicional para a empresa comunicar e construir sua legitimidade, construindo confiança com seus stakeholders. Mas este é um processo muito estático e limitado. Ações de sustentabilidade podem ser difíceis de implementar, auditar e comunicar. Principalmente em setores complexos como a Moda, que contam com cadeias de suprimentos muito pulverizadas. Transparência exige altos custos e a falta de padrões e plataformas de tecnologia comuns pode representar desafios adicionais (Marshall et al., 2016). E embora a digitalização facilite a transparência, organizar e disseminar informações ainda é caro, sendo necessário estabelecer quais informações devem ser priorizadas (Fung, Graham, & Weil, 2007).
Nossas pesquisas apontam que, conforme o ditado, com uma cajadada só uma aplicação bem planejada de Blockchain pode simultaneamente (1) reduzir os custos de transação no supply chain, monitorando melhor os fornecedores, e (2) aumentar a qualidade da sinalização da empresa focal, ampliando a transparência para seus diversos stakeholders.
A Solução Moda Justa
O Moda Justa é a solução baseada em Blockchain que é capaz de revolucionar o supply chain da Moda atuando justamente na redução de custos e melhoria da sinalização, gerando visibilidade e transparência. O Moda Justa oferece um modelo inovador para capturar como costureiras na ponta do processo produtivo avaliam suas próprias condições de trabalho. Em modelos tradicionais de auditoria e selos de qualidade, cada fábrica ou facção (como são chamadas as células terceirizadas de costura) é auditada apenas uma vez por ano (Cardamone, 2020). Além de conversar com poucas costureiras em uma única visita anual, não existe confidencialidade, logo informações podem ser ocultadas por medo de retaliação, perpetuando impactos ocultos no supply chain. No Moda Justa, as costureiras são convidadas a responder a um mini questionário mensal no seu próprio aparelho de celular. As perguntas mapeiam as questões que os modelos tradicionais de certificação pretendem medir, mas de forma mensal, confidencial e diretamente junto às trabalhadoras. Este censo mensal permite mapear as condições de trabalho ao longo do tempo, com recortes demográficos e geográficos, bem como identificar tendências e antecipar o risco de violação de condições de trabalho usando tratamento estatístico. Além disso, os dados geram indicadores customizados para cada tipo de stakeholder.
O projeto iniciou seu planejamento em meados de 2018. Ao longo de 2019 um protótipo foi desenvolvido na colaboração entre Blockforce, COPPEAD, Instituto C&A e Instituto-e, contando ainda com as marcas C&A e Osklen como laboratório. O trabalho de campo permitiu o desenvolvimento de uma solução aderente à realidade do setor de Moda, e ao mesmo tempo inovadora.
Um Futuro Sem Impactos Ocultos
Governos, ONGs e a sociedade em geral estão cada dia exigindo mais transparência das marcas (Marques et al., 2019). A mídia tem incentivado a conscientização dos consumidores sobre os impactos ocultos da Moda e estimulado a pesquisa antes de decidir sobre a compra (Tucker, 2019). No Brasil, brasileiros estão cada vez mais responsáveis e conscientes (Nielsen, 2019) ou pelo menos demonstram vontade de desenvolver um estilo de vida mais sustentável (AKATU, 2019).
Não podemos deixar de destacar que a pandemia do covid-19 trouxe novos desafios para todos os atores deste setor e um alto volume demissões (Fashion Revolution, 2020). Mais do que nunca, não podemos deixar que a crise aumente a precarização do trabalho e a fragilidade da classe trabalhadora neste setor.
O Moda Justa é uma ferramenta que expõe e reduz os impactos ocultos de uma peça de roupa, de forma inteligente, e capturando informação de quem efetivamente produz as roupas. A solução reduz os custos de transação no supply chain, garantindo rastreabilidade das peças em tempo real. Também aumenta a qualidade da sinalização das marcas sobre seus processos e seus fornecedores, já que oferece rastreabilidade protegida pela tecnologia Blockchain. Por fim, oferece um dashboard confiável e adaptável para consumidores, investidores e órgãos reguladores acessarem o que está por trás das roupas produzidas. Desta forma, oferece um caminho para preencher o vazio institucional deixado pelas barreiras de transparência inóspita e responsabilidade turva identificadas no Brasil, usando tecnologia para garantir direitos de trabalhadores e (em sua maioria) trabalhadoras, e avançar na direção de uma moda mais justa e transparente.
Dr. Leonardo Marques
Referências Citadas
- ABIT. (2020). Perfil do Setor de Moda. Retrieved from Retrieved at https://www.abit.org.br/cont/perfil-do-setor:
- AKATU. (2019). Pesquisa Vida Saudável e Sustentável Retrieved from Retrieved at https://www.akatu.org.br:
- Azzi, R., Chamoun, R. K., & Sokhn, M. (2019). The power of a blockchain-based supply chain. Computers and Industrial Engineering, 135(Aug 2018), 582–592. doi:https://doi.org/10.1016/j.cie.2019.06.042
- Broad, R., & Turnbull, N. (2019). From human trafficking to modern slavery: The development of anti-trafficking policy in the UK. European Journal on Criminal Policy and Research, 25(2), 119–133. doi:https://doi.org/10.1007/s10610-018-9375-4
- Busse, C. (2016). Doing well by doing good? The self-interest of buying firms and sustainable supply chain management. Journal of Supply Chain Management, 52(2), 28-47.
- Cardamone, E. (2020). Fair Fashion promoting visibility and accountability in Brazil’s fashion supply chain. Retrieved from Retrieved at: https://www.hyperledger.org/blog/2020/06/15/fair-fashion-promoting-visibility-and-accountability-in-brazils-fashion-supply-chain:
- EllenMacArthurFoundation. (2017). A new textiles economy: Redesigning fashion’s future. Retrieved from Retrieved at http://www.ellenmacarthurfoundation.org/publications:
- FashionRevolution. (2020). The impact of COVID-19 on the people who make our clothes. Retrieved from Retrieved at: https://www.fashionrevolution.org/the-impact-of-covid-19-on-the-people-who-make-our-clothes/:
- Fung, A., Graham, M., & Weil, D. (2007). Full Disclosure: The Perils and Promise of Transparency. New York: Cambridge University Press.
- ILO. (2017). Global Estimates of Modern Slavery: Forced Labour and Forced Marriage. Retrieved from Retrieved at: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf:
- Khanna, T., & Palepu, K. (1997). Why focused strategies may be wrong for emerging markets. Harvard Business Review, 75, 41-51.
- Kshetri, N. (2018). 1 Blockchain’s roles in meeting key supply chain management objectives. International Journal of Information Management, 39, 80-89. doi:10.1016/j.ijinfomgt.2017.12.005
- Marques, L. (2019). Sustainable supply network management: A systematic literature review from a knowledge perspective. International Journal of Productivity and Performance Management, 68(6), 1164-1190.
- Marques, L., Moreira, C., Erthal, A., Morais, D., Simões, V., & Goés, C. (2019). Overview da Transparência no Brasil. Retrieved from Retrieved at: http://rede.coppead.ufrj.br/?page_id=316:
- Marshall, D., McCarthy, L., McGrath, P., & Harrigan, F. (2016). What is your strategy for supply chain disclosure? Sloan Management Review, 57(2), 36-45.
- Nielsen. (2019). Brasileiros estão cada vez mais sustentáveis e conscientes [Press release]
- Pournader, M., Shi, Y., Seuring, S., & Koh, S. C. L. (2019). Blockchain applications in supply chains, transport and logistics: A systematic review of the literature. International Journal of Production Research, 58(7), 2063-2081. doi:10.1080/00207543.2019.1650976
- Saberi, S., Kouhizadeh, M., Sarkis, J., & Shen, L. (2018). Blockchain technology and its relationships to sustainable supply chain management. International Journal of Production Research, Online. doi:10.1080/00207543.2018.1533261
- Shermin, V. (2017). Disrupting governance with blockchain and smart contracts. Strategic Change, 26(5), 499-509.
- Sodhi, M. S., & Tang, C. S. (2019). Research opportunities in supply chain transparency. Production and Operations Management, 28(12), 2946-2959. doi:10.1111/poms.13115
- Tachizawa, E., & Wong, C. Y. (2014). Towards a theory of multi-tier sustainable supply chains: a systematic literature review. Supply Chain Management: An International Journal, 19(5/6), 643-663. doi:10.1108/scm-02-2014-0070
- Tapscott, D., & Tapscott, A. (2016). Blockchain Revolution. New York: Penguin.
- Treiblmaier, H. (2018). The impact of the blockchain on the supply chain: A theory-based research framework and a call for action. Supply Chain Management: An International Journal, 23(6), 545-559. doi:10.1108/scm-01-2018-0029
- Tucker, I. (2019). The five: ways that fashion threatens the planet,. The Guardian.
- WorldBank. (2019). How Much Do Our Wardrobes Cost to the Environment? Retrieved from Retrieved at https://www.worldbank.org/en/news/feature/2019/09/23/costo-moda-medio-ambiente:
- Zorzini, M., Hendry, L. C., Huq, F. A., & Stevenson, M. (2015). Socially responsible sourcing: reviewing the literature and its use of theory. International Journal of Operations & Production Management, 35(1), 60-109.