Os bastidores (nada glamorosos) da indústria da Moda e custo real dos produtos que compramos
Um ‘soco no estômago’. Foi o que representou o documentário The True Cost para mim e para outros com quem conversei. A mensagem principal do documentário é a de que não podemos mais ignorar os custos reais gerados pelo consumo desenfreado e por preços desproporcionalmente baixos que sustentam o modelo vigente na indústria da Moda. Uso a forma verbal ‘podemos’ para enfatizar que todos os envolvidos na cadeia de valor temos o nosso papel e precisamos nos sentir parte do problema e da solução.
Com o foco na indústria da Moda, o documentário alerta para uma guinada significativa no modus operandi do setor nas últimas décadas. Tomando os Estados Unidos como exemplo, 90% das roupas vendidas no país eram produzidas localmente na década de 1960. Hoje esse percentual é de apenas três por cento. Testemunhamos a migração da produção têxtil para países em desenvolvimento em busca de salários mais baixos e legislações mais brandas no que tangem a responsabilidade social e ambiental.Aliado a isso, vimos uma concentração do mercado na mão de poucos. Estas poucas e grandes empresas detém hoje grande poder de influência frente aos consumidores, ditando o fast fashion como norma vigente, e frente aos fornecedores, pressionando-os constantemente por menores preços. Donos de confecções em países orientais comentam no filme sobre a deflação no preço dos produtos apesar de crescentes custos de mão-de-obra. O resultado dessa equação é a adoção decutting corners, que em bom português pode ser traduzido como jeitinho. Os efeitos dessas práticas permaneciam velados até ganharem visibilidade mundial com um dosmaiores desastres já registrado no setor. O desabamento de um edifício em Bangladesh, o Rana Plaza, causou a morte de mais de mil trabalhadores e deixou outros milhares de feridos. Neste prédio funcionavam confecçõesque produziam para grandes marcas como Gap, H&Me Walmart, o que acentuou o interesse da mídia e também dos consumidores na temática de condições de trabalho.
Alertas haviam sido dados. Rachaduras eram visíveis e trabalhadores tentavam avisar. As condições de trabalho eram precárias, a carga horária extensa eos salários reduzidos. O salário dos trabalhadores em Bangladesh passou de $10 para $3 ao longo dos anos. Dependentes do emprego, continuaram a se submeter a tais condições. Tentativas de exposição dos problemas e reinvidincação de soluções resultavam em punições severas e até em mortes. Os trabalhadores não tinham voz. No documentário, um dono de fábrica chega a dizer que “trabalhadores não podem atrapalhar o trabalho do dono”. Cuidados básicos de saúde e segurança tornaram-se impedimentos para o objetivo único (e cego) do resultado econômico-financeiro. Sendo este o setor que mais emprega pessoas no mundo (um sexto dos trabalhadores), torna-se ainda mais relevante e urgente buscar outros caminhos.
O documentário aponta ainda para impactos negativos em outros elos da cadeia produtiva. Um impacto emblemático refere-se à agricultura. O processo de industrialização da agricultura alavancou a produtividade no curto prazo mas deixa marcas. A natureza tende a se auto-recuperar e se auto-regular, mas em proporções pequenas. A abordagem atual de grandes monoculturas empobrece o solo e estimula o aparecimento de pragas.A contra-partida é o uso crescente de sementes geneticamente modificadas (transgênicos), deaditivos químicos e persticidas, os quais têm impacto direto na saúde dos trabalhadores, comunidades rurais e consumidores. Um ativista ambiental indiano entrevistado apresenta no documentário o aumento dos casos de câncer e demência na população rural, levando ao assustador número de mais de 250 mil casos de suicídio. Os persticidas impactam também as gerações futuras. Filhos de mães expostas à água e ar contaminados geram crianças doentes e com necessidades especiais, físicas e mentais.
Outro impacto por vezes negligenciado são os resíduos gerados pela indústria da moda. Além da emissão de gases poluentes e contaminação de água e solo ao longo do processo produtivo, o conceito de fast fashion tornou a roupa um item facilmente descartável. O descarte muitas vezes é justificado pela doação, porém apenas 10% das doações é realmente aproveitada. Isso faz com que, apenas nos Estados Unidos, 11 milhões de toneladas de lixo têxtil sejam despejados em lixões ou incinerados. A questão fundamental é que todo esse custo social e ambiental não entra no custo do produto, sendo deliberamente negligenciado. E assim continuamos cegos a tudo isso e continuamos repetindo que“não compro produto orgânico porque é mais caro”.
Apesar de haver quem justifique as práticas atuais com base no aumento da produtividade, na geração de emprego (em especial no caso das confecções) e na suposta segurança do setor (riscos menos aparentes do que setores como mineração e óleo e gás, por exemplo), agentes de diferentes pontos dessa rede reconhecem a urgência e apontam para um caminho em busca do fair trade. O documentário apresenta diversas iniciativas. Empreendedores que criam a partirdo knowhow e da capacidade já existentes em seus fornecedores e comunidade. Empresas que buscam parcerias mais equilibradas e igualitárias, desenvolvendo juntos soluções criativase novos modelos de negócio. Celebridades e designers levantando a bandeira de um consumo mais consciente. Consumidores demandando informações sobre a origem e riscos dos produtos consumidos e dispostos a perguntar e a não mais aceitar falta de transparência.
Mas a mudança é longa e gradual. E os pilares dessa transformação estão na real mudança de paradigma. Enquanto o resultado econômico-financeiro for o único fator decisório para empresas e consumidores, será difícil promover a transformação necessária.Nosso sistema é falho pois só mede o lucro. Richard Wolf, PhD em Economia, diz que não vê espaço para questionar o modelo econômico vigente (capitalismo), apesar deste produzir tanta desigualdade. Sem questionamento, não há evolução, aprimoramento. Então o sistema colapsa. E é isso que estamos presenciando. A ideia básica do capitalismo, segundo o qual não se pode haver limites para o crescimento, conflita diretamente com os reais limites da natureza quanto ao que pode ser produzido, negociado, transportado, distribuído e descartado. Já ultrapassamos vários desses limites. Precisamos de uma mudança sistêmica urgente. Ajustes pontuais tendem a apenas deslocar o problema. Para mudar significativamente, precisamos mudar o sistema atual. O momento da virada é agora. Frente a tantos desafios, conclui o documentário, quem sabe não podemos começar pelas roupas.
O documentário The True Cost está disponível em https://truecostmovie.com. O site traz também informações sobre direitos humanos, impactos ambientais e dicas para um consumo mais sustentável.
Dra. Alice Erthal para a Newsletter Rede Transparência & Sustentabilidade em Negócios
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